A
série Explicando – a Mente foi ao ar
em setembro desse ano pela plataforma de streaming
Netflix. Em cinco episódios de vinte minutos, ela procura explicar como o
cérebro funciona no tocante a cinco aspectos: memória, sonhos, ansiedade,
meditação e psicodélicos. Iremos nos ater ao primeiro dos cinco aspectos,
fundamental para a construção de nossas vidas e tão caro à história, ou seja,
trataremos da memória. Proponho nesta pipoca uma breve reflexão utilizando
muito dos conhecimentos da neurociência acerca do funcionamento da memória em
contraponto com os problemas atinentes à teoria da história e à historiografia,
de forma a estabelecer uma relação entre eles e procuro, mesmo que de forma insuficiente,
explicar nossa dificuldade em sonhar futuros possíveis a partir de um processo
biológico.
Comecemos com os preceitos básicos.
No plano individual, a memória é um complexo sistema com propósito de preservar
o passado. Porém, sabemos que não podemos confiar cegamente em nossas memórias,
o que nos leva a questão inicial: como funciona o processo de lembrar? O
episódio explica didaticamente que as experiências que vivemos ativam
diferentes áreas do nosso cérebro, o córtex auditivo, o giro fusiforme, a
amígdala, etc., para que depois elas sejam combinadas pelo lobo temporal medial,
no qual se encontra o hipocampo – estrutura importantíssima da memória. Entretanto,
não só os eventos do passado são ativados pelo hipocampo e, para prosseguirmos,
precisamos comentar o caso de Henry Molaison. Buscando tratar epilepsia,
Molaison teve seu hipocampo removido. Ele não apresentou problemas comportamentais,
mas houve uma perda significativa da memória episódica, ou seja, ele conseguia
se lembrar de acontecimentos históricos e de hábitos que não requerem ações
conscientes, como andar de bicicleta, mas sua memória recente, o que havia
feito pela manhã por exemplo, estava completamente danificada. Além disso,
Molaison não conseguia mais vislumbrar futuros possíveis.
Este evento levou a neurociência
para outros caminhos. A neurocientista Donna Rose Addis comenta o experimento
em que indivíduos foram submetidos a uma tomografia enquanto lembravam de
experiências passadas e enquanto imaginavam experiências futuras. Foi
comprovado que o mesmo complexo de áreas ativados durante a rememoração era
ativado, quase que identicamente, quando imaginavam acontecimentos futuros. Desse
modo, o mesmo sistema que combina diferentes peças para relembrar o passado é
capaz de reunir algumas dessas peças em conjunto com outras, ativadas pela
imaginação, para simular futuros. Rose Addis comenta: “[a memória] permite que
previnamos erros futuros, que pensemos em como os eventos podem se desenrolar,
em possíveis obstáculos no caminho e em formas de superá-los.”. Assim, podemos
estabelecer que, ao deixarmos a mente vagar, reorganizamos nossas lembranças e
projetamos possíveis alternativas de futuro, dito de outra forma, nos
permitimos sonhar.
Mas como isso é relevante para o
campo da história? Sustento que o que transparece na neurociência para cada
indivíduo, esbarra na sociedade como um todo, gerando o problema da necessidade
irrefreável de relembrar passados atrelado ao medo do esquecimento. Assistimos
com o advento de novas tecnologias à uma sobrecarga de lembranças e de não
esquecimento. O Facebook, por exemplo, não deixa de notificar os inúmeros
aniversários ou os eventos de anos atrás; podemos acessar, em tempo real, os
acontecimentos de qualquer parte do mundo; consumimos disparada e repetidamente
novas séries televisivas, artistas, produtos dos mais diversos tipos. Estamos
desorientados com a vastidão de lembranças as quais não conseguimos decidir
devidamente se devem ou não serem esquecidas, ou ainda, nas palavras de Andreas
Huyssen em Passados presentes: mídia,
política, amnésia: “devemos fazer um esforço para distinguirmos passados
usáveis dos passados dispensáveis. ” (p. 37).
Desse modo, é como se,
neurologicamente, nosso cérebro estivesse saturado de memória e não há espaços
em branco para serem reorganizados em alternativas de futuro. Estamos
abarrotados e incapacitados de preencher as suas lacunas e, ironicamente, somos
uma sociedade que desaprendeu a sonhar. Estamos ilhados no conforto da nossa
memória, mas como bem sabemos, ela “é sempre transitória, notoriamente não
confiável e passível de esquecimento”. (HUYSSEN, p.37). Talvez tenhamos que
seguir as colocações de Huyssen e “lembrar o futuro”, o que aqui significa
aprender a esquecer alguns passados para que seja possível alcançar um
vislumbre de um futuro diferente do presente e do passado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário