“Ouvi
o eco da minha voz na floresta. Não é só aquela repetição; o som segue o
caminho do rio. (...). Quando você encosta num barranco, naquela procissão de
canoas – aí você descobre o Brasil, descobre você mesmo, descobre tudo. TXAI é
a metade de mim que existe em você, é a metade de você que existe em mim. TXAI
é mais que irmão, mais que amigo. Está na hora de dizer isso para os outros.”. Milton Nascimento
O
álbum TXAI (1990) do cantor e
compositor Milton Nascimento pode ser resgatado hoje com um novo olhar. A
sonoridade do disco traz à cena o “canto dos povos da floresta”, projeto que
proporcionou ao próprio Milton viajar por diversos pontos dos estados do Acre,
Rondônia e Amazônia. As gravações prezam por cantos quase guturais – se compararmos
ao que nossos ouvidos foram treinados a ouvir – de diferentes povos indígenas, como os Kayapó,
Yanomami, Waiapi, entre outros. A faixa que dá nome ao álbum será brevemente analisada
aqui com o intuito de, a partir da sabedoria das culturas indígenas, encontrar novas
abordagens e possíveis respostas para problemas que o saber científico
ocidental tem se mostrado insuficiente. Ressalto, a fim de contextualizar, a
fala de Ewa Domanska na qual ela problematiza a visão antropocêntrica do
conhecimento científico e reforça a necessidade, caso a teoria das ciências
humanas e sociais queira, de fato, responder aos problemas contemporâneos, de
estender suas reflexões sobre o passado aos seres não-humanos. Para a
professora de teoria e história da historiografia, “coisas, plantas e animais
não-humanos também devem ser incorporados à História como algo diferente de
receptores passivos de ações humanas”. (p.17).
Na
faixa “Txai” percebemos uma relação direta dos homens com as coisas que os
rodeiam, sejam os ventos, os rios, a floresta, etc. Não existem limites definidos
de onde termina um e de onde já é o outro. As explicações para o termo Txai
valorizam comparações com os elementos como o sol, a lua, o rio e o vento,
vejamos: “Lá onde tudo é e apareceu / Como a beleza que o sol te deu” ou “ Te
desejar como o vento”; a primeira coincide, também, com uma compreensão Yanomami acerca da criação do mundo, explorada
por Davi Kopenawa – que participa do álbum – em A Queda do Céu, a qual diz: “Eles [os Yanomami] ali foram criados e
vivem sem preocupação desde o primeiro tempo. ” E mais a frente: “[As palavras Omama] são muito antigas, mas os xamãs
as renovam o tempo todo. Desde sempre, elas vêm protegendo a floresta e seus
habitantes. Agora é minha vez de possuí-las. Mais tarde, elas entrarão na mente
de meus filhos e genros, e depois, na dos filhos e genros deles. Então será a
vez deles de fazê-las novas. Isso vai continuar pelos tempos afora, para sempre”.
(p. 64-65). Dessa forma, percebemos outra abordagem para explicar o início dos
tempos e de compreender uma cultura. No verso “Txai, tudo se chama nuvem / Tudo
se chama rio / Tudo o que vai nascer”, percebemos a complexidade do tempo, já
que até o que ainda não é, o que não nasceu, se comunga no presente. O tempo
não é linear, como o nosso, mas cíclico. Outro verso que mostra esta
complexidade é “Txai, a tua seta viajou / Chamou o tempo e parou / Dentro de
nós”. Vemos uma personificação do tempo e, ainda, algo muito distante para nós,
um tempo que, naquele universo, se permite estacionar. Temos talvez, nessa seta
que viaja, mas que para dentro dos homens, uma compreensão diferenciada da
memória? Recordo do Txai porque ele existe também em mim?
A
música ensina para o ocidente que, dentre outras coisas, a compreensão do
próprio ser perpassa também o conhecimento do mundo em que se está inserido.
“Todos metades, todos inteiros / Todos se chamam Txai”. Este verso é um profundo
ensinamento, uma consciência do outro como parte fundamental minha, a qual escapa
às teorias ocidentais, e que deveríamos trazer para nossa compreensão de mundo
na busca da construção de uma relação mais sustentável, ética e responsável com
“as coisas, as plantas e com os animais não-humanos”.
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