quarta-feira, 30 de outubro de 2019

O quadro Guernica como representação de um passado "que não morre"



           Sendo possivelmente um dos quadros mais emblemáticos já feitos, a obra Guernica, pintada em 1937 por Pablo Picasso, retrata o evento histórico do bombardeio da cidade de Guernica por parte da Alemanha nazista, feito em 1937, durante a guerra civil espanhola. O quadro provoca no observador as mais variadas sensações, desde o medo ate um estado de confusão; no entanto, dentre todos esses variados sentimentos provocados, com suas cores mortas e formas geométricas indefinidas, uma coisa na obra é certa: trata-se de um retrato do terror da guerra.
A pintura apresenta o que seria “vários pontos de vista” da tragédia de Guernica, onde, devido a uma questão estética da pintura cubista, coloca seu observador sob uma óptica de várias perspectivas diferentes, narrando os momentos antes, durante e depois da tragédia. Essa múltipla perspectiva contribui para a transmissão de um sentimento de confusão, colocando o expectador em frente da tragédia de forma que o mesmo se encontre completamente perdido e chocado.
Guernica é como um grito de desespero em frente a um poder destrutivo nunca visto antes; como dito pelo crítico Robert Rosenblum:
 Ela equivale a uma imagem do fim do mundo, sobretudo do mundo moderno, como o conhecemos. Um clarão ofuscante de chamas, em seguida a sensação do caos definitivo. Mulheres e crianças gritando, um touro, um cavalo, uma visão de choque e trauma que representa todo o nosso pavor à beira do abismo. Assim é o quadro Guernica: da forma mais impressionante e poderosa, ele anuncia a mensagem da guerra, do potencial destrutivo do século XX". 
        O quadro funciona como uma forma de lidar com um evento que a historiografia do século XX seria incapaz de lidar, cujas proporções ultrapassam a capacidade destrutiva que era conhecida até o momento, um prelúdio do que viria ser o terror da Segunda Guerra Mundial.

terça-feira, 22 de outubro de 2019

Devaneios olhando facebook do meu tio



Por vezes fico pensando em como ser intelectual neste mundo com tantas urgências: desastres ambientais, o racismo sendo desmascarado, o sexismo denunciado e o Bolsonaro eleito. No texto “Modernidade - Sobre a semântica dos conceitos de movimento na modernidade”, de Reinhart Koselleck, o mesmo fala “a mudança da experiência, que se torna cada vez mais objeto de reflexão”. A reconfiguração do mundo se torna cada vez mais objeto de experiência, uma vez que as experiências humanas estão cada vez mais imersas em constantes mudanças. E nessas constantes mudanças, existe eu, você e o nós, nos deparando com nossas próprias mudanças que a contingência proporciona todos os dias. 
O historiador ao longo do tempo caminha com o leitor para um plano de reflexão sobre como a ideia de “novo tempo” vai se construindo e como as experiências vão, ou não, se encaixando nesse quebra cabeça em construção. Apesar de ser um texto historiográfico, com a estética de tal, enquanto lia, as interrogações do agora transverlizavam minha atenção. Pensava nas pessoas nas quais conheço e que elegeram o senhor Jair Messias Bolsonaro na crença de que esse “novo tempo” está perdido. Acreditam que seus votos seriam o início para um caminho alternativo a ser seguido. Assim como no século XVIII, em que o termo “novo tempo”, foi posto em oposição à Idade Média, o Partido Novo oxigena as possibilidades de retornar ao que o “velho tempo” propunha.”.
É engraçado como nos deparamos com as redes sociais das pessoas mais velhas da nossa família. Sempre troco ideia com meus amigos sobre algum post que algum tio ou vizinho compartilhou, por ora machista ou homofóbico, por exemplo. “Na minha época, menina era menina e menino era menino, hoje em dia os tempos são outros”, “As mulheres de hoje em dia acham que é bonito andar com o suvaco cabeludo, o mundo tá ficando doido”, são coisas que encontramos, não somente nos comentários mas também nas nossas experiências enquanto jovens, que escapam dos estereótipos ditos como tradicionais.

Ainda no texto, Koselleck aponta para um argumento de Heeren, em que existe uma exigência de que decorresse um tempo mínimo antes de adotar o conceito de “novo tempo” significou uma renúncia à ênfase na própria época. Essa renúncia hoje em dia é ensurdecedora, aclamando para um retorno aos bons costumes, para silenciar esse baralho que as manifestações que não aceitam as opressões causam. O que é contraditório, é como a renúncia ao “novo tempo” tentou ser recalcada no Partido Novo. O novo para o velho, jovens sem futuro, humanidade sem perspectiva. Um conjunto de palavras que combinadas de diferentes formas, revelam algumas faces desse presente confuso, emergente e em emergência.


Olhares sensíveis pelo site do G1

Pierre Nora chamou minha atenção para algumas inquietações que venho me questionando. Nesse mundo onde tudo é transmitido ao vivo, como as tragédias que aconteceram nas escolas Realengo e Suzano ou o assalto ao ônibus na ponte Rio-Niterói, vão cada vez mais fortalecendo o imaginário de que vivemos numa sociedade sem saída, aumenta o medo e a insegurança.  


Fico pensando: como historiadora, como se deslocar desses sentimentos que nos trasversalizam, por estarmos nessa atmosfera, e fazer uma crítica a tudo isso que vem acontecendo? Talvez eu como jovem, ansiosa e medrosa, seja mais penetrada por esses sentimentos e seja uma dúvida que se relaciona com minhas crises existenciais. Pensando nisso, assisti um vídeo do Leandro Karnal, onde ele aponta que as tecnologias não são boas nem ruins, elas são uma técnica que está disponível para o nosso uso.

Viver num penetrado por informações e acessos constantes permitiu uma mudança de espaço de experiência. Talvez não tanto para quem já cresceu nesse espaço com essa formação, mas para as pessoas mais velhas, que cresceram num horizonte de expectativas e hoje vivem imersas nas multiplicidades do presente. A possibilidade de exercício de cidadania, pelo direito a opinião a diversos temas, ao Existir nas redes sociais, a quebra de paradigmas em relação ao gênero e raça, por exemplo, tenciona as formas pelas quais a escrita da História continuará sendo escrita. Coloca para nós um desafio – entendendo esse desafio sem dimensões do bom ou do ruim – sobre nossa possibilidade de escutas dessas vozes que por tempo estiverem em um silêncio ensurdecedor, de protagonizar outros agentes e temas, treinando nosso olhar para sensibilidades das quais não éramos sensíveis e trazendo nossa atenção para o óbvio que estava escondido.

Museu de grandes novidades



Lendo “O evento modernista” senti que muitos questionamentos que tenho foram se assentando no que o autor propõe. Na atual conjuntura – e aí me vêm muito o que Mateus e Valdei falam no livro “Atualismo 1.0: como a atualização mudou o século XXI” – diversas ocorrências nos correm a ideia: “será que isto é um marco histórico?” ou “agora a rumo da História mudou?”, pela possibilidade de virtualização e acompanhamento imediato de tudo que ocorre no mundo. Sinto que o mistério do devir e as incertezas da contingência, são penetradas pela vontade de incessante de organizar esse presente, tentar entender como essa linha do tempo atual será explicada no futuro – talvez não tão longe.

Ao curso do texto, me veio em mente dois documentários nos quais nos últimos tempos marcou meu imaginário. Fiquei pensando que, a redemocratização da sociedade, que possibilitou vários agentes sociais terem suas vozes escutadas traz o desafio de reorganizar nossas narrativas, analisar os acontecimentos e superar suposições que até então foram mantidas firmemente pelo Estado Nacional. A diluição do poder e a construção de novas cidadanias, testam esse limite do que entendemos por democracia e me convida a repensar quais tipos de organizações sociais nos foram negadas ou negligenciadas até então.
O documentário da Petra Costa – “Democracia em vertigem” – foi um momento em que essa linha do tempo imaginária foi se construindo na minha mente. E aqui, se faz presente o que White disse quando:
“(...) O Modernismo resolve os problemas propostos pelo realismo tradicional, isto é, de como representar realisticamente a realidade, simplesmente abandonando o fundamento sobre o qual o realismo é construído, em termos de uma oposição entre fato e ficção. ”
A distinção que o autor fala sobre “real” e “imaginário” e que é colocado em suspensão ficou marcante nesse documentário, talvez seja pela possibilidade de ver na televisão os desdobramentos de um acontecimento que vêm penetrando o Existir desde 2013, onde foi possível a visualização dos mesmos acontecimentos nos quais participamos intensamente.

Outro documentário que me veio à mente ao longo da leitura, foi o “Espero tua (re)volta” produzido pela Eliza Capai e que retratada o envolvimentos dos jovens secundaristas na ocupação das escolas em São Paulo. Tendo em consideração as problemáticas propostas no texto e também os debates em entorno das discussões sobre redemocratização, visualizo o que Gertrude Himmelfarb diz com: “A História do jeito que você quiser” – representações da história nas quais tudo é possível”. Fico pensando na potencialidade dessa representação, onde jovens com subjetividades plurais puderam se expressar, dando a esses acontecimentos a possibilidade de demonstrar suas experiências da forma como foi vivenciada por tais.


O limite estético da narrativa



Ao narrado épico é permitida a mentira, pois, aqui, não se antevê nenhum efeito nocivo. Assim, lá onde a mentira parece agradável, ela é permitida: a beleza e a agradabilidade da mentira, desde que não cause danos. (NIETZSCHE, Friedrich. Fragmentos póstumos. 19 [97], verão de 1872 – inicio de 1873; em Friedrich Nietzsche, Sämtliche Werke)

            Teria a arte cinematográfica um alvará estético para manipular a verdade? Ou, em outros termos, para adorná-la de mentiras? Quais seriam os parâmetros éticos que imporiam os limites ao discurso e a representação? Todas essas questões, podem ser levantadas a partir da leitura do texto o vento modernista de Hayden White, que coloca para nós o tema acerca da fusão entre o real e o imaginário. De certa forma, o problema que assola a contemporaneidade não seria mais uma interferência de elementos imaginários em uma trama dita real, mas sim uma colocação em suspenso da distinção existente entre real e imaginário.
            Dentro desse cenário, tudo seria apresentado como se pertencesse a mesma ordem ontológica, provocando um enfraquecimento das funções referenciais das imagens de eventos. Nesse meio em que a história pode ser narrada como você quiser, pois todas representações são possíveis, a indústria cinematográfica encontrou um terreno fértil para criar enredos que condensam a todo momento elementos imaginários e reais, não deixando abertura uma para que se faça uma distinção entre esses dois polos. O que acontece, entretanto, é que essa dinâmica coloca em jogo não apenas a questão da verdade, mas também passa a envolver uma questão de responsabilidade moral frente aos acontecimentos.
            Visto que a mídia influi cada vez mais na formação da consciência histórica, há uma problematização sobre até que ponto a narrativa cinematográfica deve estar comprometida com uma dimensão real dos eventos. Talvez a estética da ficção seja agradável, como diz Nietzsche, até o ponto em que não cause danos, principalmente no que tange aos eventos considerados traumáticos para uma coletividade. O limite dessa narrativa épica dos eventos, e, portanto, a limitação dessa condensação estética, poderia estar então nos danos que ela causa à construção de uma consciência histórica, comprometendo assim a legitimidade de tais eventos perante a narrativas que não possibilitam a distinção entre as facetas reais e ficcionais dos acontecimentos.

domingo, 20 de outubro de 2019

As várias facetas do evento e o historiador


Provavelmente ao pensarmos sobre algum evento histórico logo nos virá a cabeça não necessariamente algo que lemos no livro, por exemplo, mas sim, um acontecimento como a queda das torres gêmeas, a qual foi maciçamente televisionada na época de sua ocorrência. Isso decorre de uma característica do modernismo e que se intensifica nos nossos dias, ou seja, a possibilidade de construção de narrativas históricas ampliada para além do historiador, graças a mídia, que permitiu o surgimento de documentários, filmes, vídeos, os quais mesclam, por vezes, visando representar um acontecimento histórico, a realidade e a ficção. Em razão, como pontua Hayden Write em seu texto “O Evento Modernista”, do evento, que fazia parte da trilogia característica do século XIX – evento, personagem, enredo- ter sido dissolvida no modernismo. 
A dissolução do evento rompe com a separação que havia entre fato e ficção, estas que são tratadas, a exemplo de certos filmes históricos, em uma mesma ordem ontológica. De modo, que em certa medida um desafio é posto a tradicional forma de narrar a história, à medida que está parece não mais possuir os elementos para abarcar a rede de significações que permeia o evento. Posto isso, temos que como White afirma as gerações atuais podem ter dificuldade em atribuir um acordo entre os significados dos eventos, ao passo que a este não só é atribuída, em uma mesma rede interpretativa o real e o imaginário, mas também a ampliação de sua difusão, profundidade em razão das mídias, fugindo, assim do domínio do historiador.  
 A falta de consciência histórica, a perda da legitimidade do historiador e os revisionismos são fatores que contribuem para potencializar o desafio a história tradicional.  Assim, a defesa de White da necessidade de estetizar o evento, parece assumir hoje uma importância singular, tendo em vista, que os meios de acessar a história hoje se amplia por canais de difusão, que dão voz a narrativas descompromissadas com a veracidade do fato, cabendo ao historiador adentrar esses espaços, objetivando, por um lado, ummaior aderência do evento histórico no entendimento dos sujeitos e por outro lado, como defende White permitir um prolongamento da existência de tais eventos na cosmovisão destes sujeitos, abrindo a possibilidade de ressignificar o futuro de forma diferente, mais responsável. 

A ficcionalização dos eventos e o advento da Netflix




Hayden White em “O evento modernista” discorre que o evento não é algo que se é dado na natureza, mas que vai se transformando ao longo do tempo. Dentro disso, a literatura assumiu um papel importante nessa transformação, pois é por meio dela que a partir do século XX se tem uma maior ficcionalização dos eventos, colocando-se em suspensão a diferenciação entre o que é real e o que é fictício.
A partir dessas colocações feitas por White, pode-se pensar em torno da midiatização dos eventos históricos a partir das plataformas de streaming como a Netflix e algumas de suas produções que perpassam tais acontecimentos: Vikings, The Crown e Versailles são alguns exemplos dessa mescla entre história e ficção. De forma ficcionalizada ou não, essas produções são um tanto quanto relevantes, uma vez que elas são altamente prestigiadas pelos espectadores e, acabam moldando as impressões a respeito dos eventos.
A partir dessa reelaboração dos enredos, pode-se acrescentar romances, dramas e outros fatores que complementam o enredo das tramas. Uma vez que, o interesse pelas produções não parte pela temática abordada, mas sim, por todas as peculiaridades que englobam a narrativa e que despertam a curiosidade de quem está assistindo.
Por fim, essa mescla entre história e ficção pode ser um tanto quanto sintomático, uma vez que, a partir do enredo ela pode alterar toda a trama e, assim, produzir uma alteração dos fatos ou uma interpretação por parte dos telespectadores que seja um tanto quanto equivoca perante o acontecimento.

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

O evento, o trauma e os passados presentes.

                                                       David Alfaro Siqueiro - Angústia, 1970.


          Angústia, medo, desespero, aflição, frenesi. Esse foi a mistura de sensações propiciadas pelo período das eleições brasileiras em 2018. Todo esse êxtase de pressentimentos e intuições já propiciavam a criação de um horizonte de expectativa feito de um espaço de experiência que (ainda) não era real.
A confirmação da eleição do atual presidente da República em outubro serviu apenas para a comprovação de um evento que já tinha suas raízes no início do ano passado. Nesse viés, o fato e o evento aconteceram simultaneamente, impossibilitando a existência de um espaço necessário para o distanciamento e, por consequência, a criação da narrativa histórica. Desse modo, todo esse acontecimento se deu de uma vez só, criando diferentes perspectivas e diferentes visões sobre o mesmo fato.  
Tal fenômeno pode ser explicado, segundo Hayden White, pela explosão de eventos que se deu a partir da Modernidade – falamos da modernidade no sentido de acontecimento contemporâneo do século XX -, e que pode ressignificar o próprio conceito em questão.
Se antes, o evento foi considerado algo natural e universal presente na narrativa histórica, White revela o que se teve após essa concepção. À vista disso, o acontecimento e o evento, trabalhados como sinônimos pelo autor, passam a ser caracterizados como históricos, que se transformam ao longo do tempo e que são cada vez mais diluídos na escrita da História.
Não se tem, a partir do século XX, a distinção clara entre o que é real e o que é ficcional na narrativa histórica e, todo esse processo, possibilita a criação de diversos horizontes de expectativas baseados em diferentes espaços de experiência provenientes de um mesmo evento.
 O trauma, tem papel fundamental nesse contexto, uma vez que passa a ser considerado uma resposta particular a uma crise e que ainda, cria o seguinte paradoxo: a noção de se ter um problema versus a impossibilidade de resolvê-lo. Todos nós (ou algum de nós), entendíamos o real perigo que seria a eleição de Jair Messias Bolsonaro, mas todos nós também, estávamos de mãos atadas, vendo todas as nossas possibilidades de impedir que esse fato acontecesse sendo destruídas pelas fakes News, pelo antipetismo, pelo poder da mídia e da internet.
Um dos problemas, ressaltados por White, é justamente essa dificuldade na projeção de sentido no presente, contrariando a facilidade de sua identificação e narração que poderiam ser feitas antes. Como descrever nossos passados se a todo momento eles estão presentes e vivos e que ainda, são capazes de se relacionar com as nossas experiências atuais e, principalmente, promover uma possibilidade de abertura para as diferentes significações feitas sobre um mesmo evento? A atribuição de significado é feita automaticamente, por diversos ângulos, criando um imediatismo na produção de sentido e na produção de um posicionamento.
Nessa estrutura, o mito e a sua fabricação são amplificados e facilitados e há toda uma criação de um tratamento estético como forma de apresentar e representar os eventos. O próprio movimento de campanha e eleição do Bolsonaro são evidências claras desse processo.  O mito foi de fato criado.
Os dados históricos se tornam então, nesse cenário, insuficientes para mobilizar o passado e a sociedade. Todas as nossas memórias sobre a Ditatura e todos as verdades que tínhamos a partir delas passam a ser questionadas e duvidadas. A angústia, o medo, o desespero, a aflição e o frenesi retornam à nossa realidade, deixando claro que em nenhum momento essa amálgama foi superada ou tida como um passado que, de fato, já passou.

domingo, 13 de outubro de 2019

O sensacionalismo nosso de cada dia

Meu avô todos os dias, fielmente, às 17h da tarde se senta em frente à TV para acompanhar os noticiários. Helicópteros, policiais, mocinhos, bandidos e matérias dramáticas de superação invadem a sala de TV e prendem a sua atenção de forma imersiva. Ele briga com os ladrões, xinga os políticos e chora pelas tragédias televisionadas, tudo isso em um intervalo curto de programação. Do outro lado, temos minha avó com seu celular em mãos recebendo correntes e notícias nos grupos de WhatsApp, tudo isso ao mesmo tempo dentro do mesmo ambiente.
Por meio das colocações feitas por Pierre Nora em "O retorno do fato" pode-se trazer à tona as questões que perpassam os sensacionalismos presentes em muitos noticiários televisionados, a espetacularização da notícia - como colocada pelo autor, proporciona aos telespectadores uma maior interação e um suprimento informativo, mesmo que o acontecimento seja imposto. Ou seja, o que causa em meu avô a fúria e a revolta com o que é noticiado diz mais respeito da forma que a notícia é dada do que as suas próprias convicções, uma vez que por trás do que é televisionado há uma certa tendência ideológica.
A produção em grande escala dos acontecimentos através do monopólio das informações por meio das grandes mídias, como no caso das emissoras de televisão, se tornou algo um tanto quanto problemático no Brasil. A partir do imediatismo que a internet proporciona, as notícias correm de forma mais rápida entre os brasileiros, o que transforma o acontecimento em algo gigante, uma vez que, há uma aproximação do evento com o imaginário e, consequentemente, o cotidiano dos indivíduos.
Mesmo com o advento da Internet e a rapidez em que circulam as notícias e informações, a televisão ainda se faz presente nos lares brasileiros, por meio de números canais abertos e fechados fornecem aos brasileiros entretenimento e informação diariamente. Através da internet e da televisão os acontecimentos passam a tomar uma proporção gigantesca, o que pode ser sintomático, pois essa expansão informativa pode tomar proporções alienantes e sensacionalistas.



Voyeurismo digital

Imagem: Selfie em Espelho Hex, de Anish KAPOOR.


A monstruosidade do acontecimento trazida por Nora (1995), fabricada pelas mídias de comunicação de massa atendendo a um sistema que busca a produção constante e acelerada do novo, do sensacional, remete à discussão de Byung-chul Han (2018) em relação ao homo digitalis. O filósofo sul coreano alude ao termo homo electronicus, proposto por McLuhan (1978), atualizando-o para a contemporaneidade hiperconectada, por isso o digitalis. Esse indivíduo, habitante digital da rede, não tem a capacidade de organizar-se em massa, adequando-se a um novo modelo especial de aglomeração, o enxame. São seres voláteis, como os animais que organizam-se em enxames, e apontam para um paradigma efêmero. Enquanto que a massa apresenta um espírito comum, uma topologia organizada, o enxame digital é caracterizado pela individualidade: a subjetividade de cada usuário destaca-se. Enquanto que os indivíduos organizados em massa marcham, o enxame digital dissolve-se. Não há, para Han, um espaço do agir em conjunto no universo digital, não há solidariedade.

A perspectiva do mundo digital de Han liga-se à de Nora em relação ao acontecimento monstruoso quando se pensa principalmente na necessidade da produção de acontecimentos que rege o comportamento digital. O desejo pelo novo, que caracteriza a existência acelerada dos sujeitos contemporâneos em que tudo torna-se evento, não oferece espaço suficiente para uma produção de saber, impedindo a organização e a atuação em termos práticos. O acontecimento é o maravilhoso das sociedades democráticas, como afirma Nora, é um espetáculo. O “voyeurismo” em torno do acontecimento esvazia-o de sentido, dificulta a sua articulação enquanto algo revolucionário, pois não é mais portador de raridade: tornou-se demasiadamente cotidiano. É a banalização da violência do real com pouca, ou quase nenhuma, movimentação prática e política. A declaração da atriz Luana Piovani poderia bem ilustrar o enxame digital de Han e a banalização do acontecimento em Nora:

"Eu queria postar foto dos meus filhos e tinha que postar o negócio da Amazônia, daí eu tinha que postar os golfinhos, era o tubarão, era o Leonardo DiCaprio, era o 342, era a Paula Lavigne dentro do nosso grupo falando não sei o que. Daí tem que ir para Brasília, daí não sei o que mais, daí vamos não sei o que do gay, vamos na manifestação a favor do GLSTUVXZ [em menção à sigla LGBTQ+]. Meu Deus do céu, dá muito trabalho. Não estou conseguindo postar eu bonita de biquíni. Tem quatro coisas políticas para fazer, tem cinco pessoas me pedindo coisas absolutamente importantes e relevantes".


(Disponível em: https://emais.estadao.com.br/noticias/gente,luana-piovani-fala-sobre-critica-a-paula-lavigne-nao-me-incomodo-com-fofoquinha,70003035753. Acesso em 13 de outubro de 2019.)Para compartilhar esse conteúdo, por favor utilize o link “https://f5.folha.uol.com.br/celebridades/2019/10/paula-lavigne-ironiza-luana-piovani-com-foto-de-biquini-e-ganha-apoio-de-famosas.shtml” ou as ferramentas oferecidas na página. Textos, fotos, artes e vídeos da Folha estão protegidos pela legislação brasileira sobre direito autoral. Não reproduza o conteúdo do jornal em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização da Folhapress (pesquisa@folhapress.com.br). As regras têm como objetivo proteger o investimento que a Folha faz na qualidade de seu jornalismo. Se precisa copiar trecho de texto da Folha para uso privado, por favor logue-se como assinante ou cadastrado.
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"O Retorno do Fato" Pierre Nora


Hoje não é necessário um deslocamento no espaço para se chegar a uma informação, ou se submeter a dias, quem sabe meses de espera, para obtê-la, temos ela de maneira simples e direta seja pela televisão, seja pelo rádio ou pelos smartphones. Somos expostos a tantos acontecimentos, que uma desorientação se instala. Pierre Nora, ao escrever o seu texto “O retorno do fato” não vivia uma intensidade tão grande de acontecimentos como nos, contudo sua reflexão é ainda atual e se faz necessária nesse momento, no qual a democracia parece estar em xeque justamente por honra uns dos seus princípios fundamentais, ou seja,  a abertura ao debate.   
O debate é sempre algo saudável em uma democracia, contudo quando o que passa a orientar o diálogo são acontecimentos que corrompe a verdade histórica, temos instalado uma situação em que os historiadores já não possuem o monopólio do acontecimento, pois este logo que ocorre já é assimilado pelos mass media, conforme seus interesses próprios no rol, por vezes dos grandes acontecimentos da humanidade, de modo que segundo Nora, o acontecimento se apresenta ao historiador como um dado já pensado, depurado em suas proporções. Em consequência disso, o processo de elaboração e trabalho de tempo que tal profissional outrora fazia já não é de seu monopólio, mas é um exercício compartilhado por todos aqueles que sentem necessidade de compor a polifonia dos acontecimentos. 
À medida que isso ocorre, como observa Nora há por parte dos sujeitos uma participação democrática, que, contudo, não é efetiva, por haver uma mistura entre distância e intimidade, a qual ainda é um meio desses sujeitos participarem e viver a história contemporânea, mesmo que esta tenha uma multiplicidade de direções, a saber, em razão do revisionismo histórico e das fake news, que a despeito de qualquer consciência histórica promovem orientações aos indivíduos que contribui para a  desorientação. Assim, por um lado o poder enquanto, conforme o autor, é uma primeira forma do saber, contribui para promover, por outro lado, o aumento das angustia, incertezas. De maneira que a democracia entra em xeque quando parece não conseguir sustentar esse modelo de superinformação, hiperdireções, a ponto de não conseguir harmonizar isso em um plano de ação satisfatório para todos os sujeitos.