segunda-feira, 16 de setembro de 2019

O lugar da tradição na historiografia ocidental moderna.





Conforme Michel de Certeau, um dos elementos presentes no início do que compreendemos constituir a história ocidental moderna é o distanciamento entre o presente e o passado. Neste sentido, o passado passou a ser visto como um outro que deveria ser acessado por meio de sua presença na forma de vestígios, que seriam instrumentalizados pelo historiador para a produção da narrativa científica histórica. A morte do passado e o sucessivo distanciar-se de uma história magistra vitae, ruptura essencial dentro do conhecimento, possui de alguma forma ambiguidades ou questões que colocam em discussão pontos de suma importância para os profissionais do campo, tendo em vista suas potencialidades e desdobramentos na sociedade. É sabido e de certa forma consensual que a compreensão de tempo histórico é o que dá sentido à disciplina. Mas a preocupação dos historiadores em cair em anacronismos nem sempre é compreendida ou encontra-se presente no mesmo nível dentre outros grupos da sociedade; neste sentido, a tradição, embora seja um objeto de estudo presente na historiografia, possui grande influência no público geral, alimentando uma concepção de história diferente da história acadêmica. 


Em meados da década de 1970, o filósofo alemão Hermann Lübbe escreveu sobre a função da História, diante do questionamento de se haveria uma crise do saber. Lübbe chegou, entretanto, no entendimento de que ao invés de uma crise da História, haveria a busca de um conhecimento que diz respeito a todos. Isso pressupõe a necessidade de um alcance maior do conhecimento histórico acadêmico, considerando as implicações do conhecimento e do desconhecimento.  Uma história como mestra da vida, desconsiderando as singularidades do tempo histórico pode ser um problema, mas uma história que não tem o que ensinar pode ser um golpe contra a própria disciplina. Portanto, parece ser sensato que algo seja colocado  no lugar, visto que a tradição ligada a uma história como mestre possui grande força e papel orientador. Pensar sobre o lugar da tradição na história ocidental moderna é também um convite para se pensar sobre os limites do próprio campo e os caminhos que podem ser traçados diante de um mundo em constante troca e transformação. Pensar sobre o lugar da tradição na historiografia ocidental moderna envolve a necessidade de colocar em xeque o que Michel de Certeau lembra sobre o "não dito", para que novas epistemologias possam compor a construção de um campo do saber aberto para a realidade do mundo humano e das experiências históricas adjacentes. Por fim e é importante ressaltar que pensar sobre o lugar da tradição na historiografia não significa colocar perigosamente no centro do conhecimento a quebra dos pressupostos que dão sentido à ciência, como a singularidade dos tempos, mas incluir conhecimentos e percepções que por vezes são colocados à margem; este pode ser um caminho para que o saber acadêmico se aproxime do público comum, contribuindo para a difusão do conhecimento. 

Sobre essa inclusão – ou atualização –, escrevo a partir do que Michel de Certeau descreve como lugar, inerente à produção escrita da história, tendo em vista as escolhas que são feitas e o complexo sistema das sociedades onde é elaborada; recordando-nos sobre os erros cometidos ao longo da história da própria disciplina – etnocentrismos, epistemicídeos, etecetera – e abrindo portas para novos acertos e avanços na ciência histórica.

Nota: A imagem refere-se à capa do livro Apologia da História ou o Ofício do Historiador (Marc Bloch) na edição da Editora Zahar, produzida por Sérgio Campante.

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